Para as minhas filhas que fizeram desabrochar dentro do meu ser um
sentimento único e arrebatador que faz de mim um ser humano muito melhor e
especial.
“E mesmo assim recebeste o que querias desta vida?
Recebi.
E o que querias tu?
Considerar-me amado, sentir-me amado aqui na terra.”
RAYMOND CARVER - “LATE FRAGMENT”
E porque hoje celebra-se o Dia da Mãe, o Arco Iris Autista dedica este
texto não só a todas as mães, mas àqueles que transformam toda uma vida só por
existirem, os filhos claro.
Apesar de estar aqui a celebrar convosco o dia da Mãe, não o acho assim tão
especial e passo a explicar quais os meus motivos. Ser-se mãe não significa
carregar-se no ventre durante nove meses um ser que carregará parte dos nossos
genes, isso faz parte da definição de progenitora, então o que realmente
significa ser-se mãe?
Quando fui mãe pela primeira vez, não estava claramente
preparada para o ser, entre muitas coisas a idade não era de todo a apropriada
e talvez ainda não soubesse quem eu era de facto, ainda andava a descobrir-me
enquanto ser. Quando nos explicam o que muda após sermos mães nunca conseguem
transmitir aquilo que realmente acontece, não só ao nosso corpo dorido após
todo o processo do nascimento, mas aquilo que verdadeiramente acontece ao nosso
ser, aquilo a que eu denomino de arrebatamento. Sim, para mim foi isso que se
deu…um arrebatamento no momento em que vi a minha filha nos meus braços a olhar
para mim ou através de mim, foi um momento de cortar a respiração em que tive
de lembrar o meu corpo ainda paralisado da anestesia para respirar, estava
perdidamente apaixonada não pela ideia de ser mãe, mas por aquele pequeno ser. Lembro-me
de ainda na maternidade achar que não ia saber distinguir os diferentes “choros”
quando fosse finalmente para casa, a ideia de dar o primeiro banho era um
horror, eram tantas as perguntas sem resposta, claro que para todas elas só
havia uma resposta possível: o instinto!
Só voltei a ser mãe muitos anos mais tarde, naturalmente que todo o
processo embora apaixonante não era de todo novidade pelo que acabei por não dramatizar
tanto como da primeira vez, logo parecia tudo um pouco menos emocionante. Contudo,
nunca podemos prever o que o destino nos reserva e ainda durante a cesariana
com epidural dei conta que havia algo muito diferente a acontecer, o silêncio e
a troca de olhares entre médicos e enfermeiros nunca agoiram nada de bom e por
vezes são as próprias palavras tranquilizadoras que fazem soar todos os alarmes
dentro do nosso ser. Claro que a palavra autismo na minha vida estaria ainda
longe mas já existiam características que inevitavelmente acabariam por
conduzir a esse diagnóstico quase três anos depois mas, foi naquele momento em
que percebi que a minha vida tinha mudado para sempre, só não sabia era qual o
significado disso…hoje claro que sei.
Há quem ache a mães dos miúdos do espectro do autismo, guerreiras e
especiais, somos só as mães que os nossos filhos precisam para sobreviverem num
mundo que não está ainda preparado para eles, embora estejamos a viver numa
época onde se fala tanto de Inclusão. A única coisa que posso aqui é que
garantidamente as mães destes miúdos têm de ser necessariamente corajosas e
como me disse uma vez uma dessas mães temos de ter um pouco de loucura. Estranho
não? Vejam uma lista de alguns exemplos abaixo descritos.
Quantas vezes temos de rir de algo que os nossos filhos fazem para não
chorar?
Lembro-me de rir (muitas vezes o sorriso nunca chegava nem de perto aos
meus olhos) quando a Verónica alinhava artigos de supermercado, não permitindo
que ninguém tirasse nada daquela mesma prateleira, de situação engraçada passa automaticamente
a situação alarme. A estratégia passava por sorrir e agir sempre com
naturalidade, mas qual naturalidade? Temos a nossa cria a “controlar” todo um
corredor de supermercado e os clientes (felizmente desconhecidos) a olhar
horrorizados não para a criança, mas sim para quem? Lógico para a mãe, que
mesmo que tivesse um buraco jamais poderia enterrar-se nele. Por vezes
conseguia imaginar um mundo diferente numa outra dimensão, onde conseguia
isolar o som das pessoas e até a presença das próprias pessoas.
Quantas vezes passamos noites em claro a pensar qual a melhor estratégia
para ajudar os nossos filhos a superarem os seus obstáculos quando não existe
um guia de respostas?
Quando o mundo nos desaba em cima, a tendência é de procurar soluções ou a
de fugir, fugir com os nossos miúdos “azuis” não dá certo? Então há que
suspirar, dizer ou pensar muito provavelmente em dois ou três palavrões (nunca
na presença da criança claro, seria dramático) e “arranjar” as ditas soluções!
A questão é onde arranjar essas soluções! Sim como qualquer outra mãe também
comprei um livro das perturbações de desenvolvimento, todo muito bem escrito,
mas para além de ser completamente inútil não trazia nada que me pudesse
ajudar, a não ser que eu soubesse decorar um rol de perturbações de
desenvolvimento da criança.
Quantas vezes temos de passar por situações insólitas?
Devido á selectividade alimentar e ter daquelas “sortes” em que os poucos
artigos consumidos pela Verónica estão constantemente a mudar o rótulo,
sofrendo depois rutura de stock ou simplesmente quando resolvem mexer na sua
fórmula, mudando o aroma e respectiva textura…acreditem é como tirarem-nos o
tapete. E o que se faz? Corre-se aos supermercados possíveis e imaginários até
onde a sensatez ou a falta de sensatez permite e, depois há sempre a
comunicação com a marca desse mesmo produto via telefone, mesmo que isso
signifique telefonar para um país estrangeiro.
Quantas vezes temos de justificar aquilo que não queremos nem devíamos de
ter de justificar?
Por vezes, não sempre, pois acabo por ter estratégias que permitem fugir um
bocadinho de certas situações, tenho de responder a questões que são constantemente
repetidas (apenas muda um dos intervenientes, não eu claro). Não teria qualquer
tipo de problema se as questões fossem feitas de uma outra forma, não tão
trágica ou desmotivante como geralmente são, embora também saiba que o motivo
disso é na grande maioria das vezes ignorância e não maldade…acabando por ceder
e respondendo educadamente sempre que possível mas à minha maneira.
“Deve ser horrível ter uma criança com autismo, não é verdade?
Deixe lá, há coisas muito piores como uma leucemia ou uma doença
degenerativa…isto é só autismo (engulo em seco e sorrio).
Não sei como consegues viver com isso?
É a minha filha, é suposto viver com ela (oiço os meus dentes a ranger pelo
tom da pergunta, não pelas palavras ditas).
Já imaginaste como vai ser o futuro dela?
Não e tu sabes se chove ou não amanhã? (quando a paciência não abona no
nosso código genético). “
Quantas vezes temos de levar com a
opinião dos outros quando não estamos sequer para aí viradas?
O que serve para uns não tem de necessariamente servir para os outros e
dentro do espectro isso é bastante real. Contudo, há sempre aquele indivíduo que
não vive com nenhuma criança do espectro nem tão pouco trabalha na área do autismo,
mas tem sempre resposta e solução para tudo, o que nos atesta a nós um atestado
de incompetência pois claramente aquele indivíduo é mais esperto que nós, pois
com alguma sorte até tem algum tipo de teoria. Há dias em que temos de ser mais
assertivas para não magoar essas pessoas ou até para nos poupar ter um diálogo
mais longo do que o estritamente necessário para a nossa própria sanidade mental,
mas há sempre um mas, certo? Pois bem há aquele dia em que a nossa “cria”
resolve sabe-se lá porquê fazer uma “birra” monumental e estamos perante um
momento caótico e há alguém que em vez de fugir a sete pés, vem dar não só
apoio moral, mas dar “dicas” de como lidar com a “situação” (momento para
contar até três, respirar fundo e dizer educadamente para a pessoa afastar-se
para não “esganar” a pessoa em questão).
Quantas vezes temos de ir tratar de papeis para tudo e mais alguma coisa?
Para além de termos de fazer o nosso papel de mãe como qualquer outra mãe, o
“sistema” passa a vida a pedir papeis e relatórios para os pais entregarem e
assinar. Desengane-se quem pensa que somos dramáticas, são papeis para juntas
médicas, para a segurança social, para a escola, para os médicos e penso que
não me esqueci de nada. Quando olho para toda a papelada que tenho, constato
que a maior parte dos papeis são para justificar outros e chego à conclusão que
a maior parte são mesmo desnecessários pois não estão sequer atualizados muitas
vezes (relatórios médicos e avaliações).
Poderia aqui continuar a fazer a “lista azul”, mas penso que fica aqui uma
porção daquilo que é ser-se mãe de uma criança “azul”, por vezes escapa-me como
é que conseguimos ter a nossa sanidade mental intacta e só me ocorre uma única
resposta: o nosso amor de mãe que é arrebatador e faz de nós especiais porque temos
filhos super especiais, eu tenho duas e são ambas a luz que ilumina toda a
minha vida.
Feliz dia da mãe!