Há um momento crucial na vida destes miúdos especiais que aterroriza
qualquer mãe ou pai, que é nada mais nada mesmo que a entrada no 1º Ciclo do
Ensino Básico. Para qualquer outra pessoa que não saiba como é a rotina
familiar destes miúdos poderá parecer demasiado proteccionismo e na melhor das
hipóteses ou na pior das hipóteses que os pais são uns exagerados e dramáticos,
tão longe da realidade certo? Cá em casa também foi um processo mais ou menos
complicado e só não foi pior porque a Verónica já conhecia o professor titular
da turma e alguns dos miúdos que estiveram no pré-escolar com ela.
Se para as famílias destes miúdos é um stress o início desta nova etapa na
vida dos seus filhos, imaginem então para uma criança com autismo, fora da sua
rotina, muito provavelmente numa escola com instalações diferentes de onde era
o seu pré-escolar, com uma turma nova, auxiliares novas, um professor (a)
novo(a), uma maneira de estar na sala de aula completamente diferente, só pode
ser angustiante certo? Por muito que gostasse de escrever aqui um texto
floreado não dá para o fazer porque a verdade é que esta nova fase é um
processo bastante complicado cheio de uma montanha russa de emoções. Cá por
casa foi complicado na medida que embora estivesse tudo preparado para a
entrada no 1º ciclo, na escola onde frequentava o pré-escolar, com o professor
escolhido por ela (explico mais adiante) e claro por nós pais acabou por o
agrupamento a colocar numa outra escola com uma professora (à moda antiga) e
sem nenhum dos colegas do pré-escolar. Posso dizer com toda a certeza que foi
um dos piores momentos da minha vida enquanto mãe da Verónica, é um sentimento
de impotência pois não podemos obrigar um agrupamento a fazer o que é melhor
para os nossos filhos….mesmo tendo havido suporte de opinião médica, ela não
foi sequer considerada. Por ter tomado conhecimento desta alteração somente a
uns dias de iniciar o ano lectivo, tive receio de não aceitar e colocar num
outro agrupamento longe de casa sem ter sequer bem a noção de como seria, pois,
de facto não tinha ninguém conhecido que pudesse dar um feedback. Embora a
escolha não fosse a da nossa família pelo menos tínhamos pessoas que iriam
acompanhar de alguma forma a Verónica e claro que teríamos conhecimento de como
ela passaria os dias na nova escola.
Só no início de Setembro estavam afixadas as turmas de alunos e que
verificámos através de uma mãe que entrou em contacto comigo e perguntou-me o
porquê da Verónica ser a única a não estar com os seus pares. Já não sentia
desilusão, já era mais qualquer coisa mas diziam-me que a professora que
ficaria com ela era experiente e de facto muitos pais pareciam adorar a
senhora, embora não estivesse nada convencida resolvi dar o benefício da
dúvida, afinal teria a mesma professora de ensino especial e o mesmo auxiliar
espectacular da unidade de ensino estruturado, porque não tentar? Cheia de
remorsos andei à procura de material alusivo aos My little poney, o que para não
variar não havia quase nada pois como sempre ela tem tendência a gostar de
coisas que já não estão na moda ou simplesmente não chegaram à Europa, sim ela
adora tudo o que é americano e sim, sabe que a Amazon vende coisas estrangeiras
e pede para lá compramos coisas desde os 4/5 anos. Conseguir arranjar a mochila
e o estojo foi pura sorte mas tive que inventar na parte dos cadernos, ou seja,
comigo o lema é: “Se não há, cria-se!”, pois bem imprimi uma data de póneis e
criei eu os cadernos My little poney! Por momentos achámos que criar todas as
condições pudesse de algum modo atenuar a angústia e a ansiedade de todos nós
cá em casa, tão longe da realidade mas demos realmente o nosso melhor nessa
altura, modéstia à parte.
Então o famoso dia D chegou, escusado de dizer que practicamente ninguém
dormiu na noite anterior, entrar naquele corredor que seria até habitual pois
ela tinha passado por ele 3 anos consecutivos para frequentar a unidade
estruturada mas naquele dia parecia dia
de sentença, tentei ignorar a sensação amarga que tinha e dirigi-me à sala, não
consegui ter nenhuma empatia com a professora e comecei a sentir um ligeiro
pânico. Se eu estava a sentir pânico então como estaria a miúda, ainda por cima
sem conseguir comunicar verbalmente nessa altura? Tinha tudo para correr mal e
correu mesmo! Ao fim de uma semana, já tínhamos assistido à minha frente a
professora ameaçar bater nas mãozinhas como se fosse a coisa mais natural do
mundo, os miúdos completamente sossegados na sala de aula nos primeiros dias,
sem se levantarem das cadeiras mesmo não estando nenhum adulto (não me parecia
de todo normal, uma vez serem miúdos dos 5 aos 6 anos de idade), vi uma
professora completamente contrariada, a pensar que eu tinha exigido a mesma
para a minha filha (nem sequer sabia quem era a senhora antes). A miúda acabou
por ficar mesmo doente devido a toda esta situação, tinha pesadelos nocturnos,
dores abdominais, náuseas e então vieram as diarreias, basicamente estaria
aterrorizada. Não querendo entrar aqui em detalhes ao pormenor, acabou por vir
para casa uns dias, até as condições estarem reunidas na escola que tínhamos escolhido
para a nossa piolha, não tinham uma auxiliar para a acompanhar em pequenas tarefas
ou necessidades básicas devido à condição de Autismo. A resolução esteve longe
de ser pacífica e tive de pedir ajuda aos Pais em Rede, acho que sem eles não
teria muito provavelmente conseguido concretizar a transferência de escola. Partilharei
aqui o contacto desta associação pois penso que é relevante para todos os
miúdos portadores de algum tipo de deficiência, não só os que pertencem ao
espectro do autismo.

Então, finalmente ela teve verdadeiramente direito ao seu primeiro dia de
escola, vi um sorriso tão cheio de alegria e um brilho no olhar que não dá para
descrever em palavras mas que ainda hoje quando recordo me emociono, não tanto
por termos vencido esta batalha mas por ter visto finalmente aquele olhar no
rosto da minha filha….acho que qualquer pai ou mãe percebe o que eu quero
dizer.
http://paisemrede.pt/
Querem saber como sei que ela escolheu o professor dela?
A verónica esteve
3 anos no pré-escolar onde infelizmente no último ano houve alterações, tendo
havido algumas substituições da educadora da sala, o que acabou por
destabilizar não só ela como todos os meninos da turma dela. Numa altura em que
pensávamos se ficaria ou não mais um ano no pré-escolar por ter 5 anos e não 6,
ela resolveu procurar mais vezes o Professor na sala do lado do 1º ciclo e a
afinidade com os miúdos era tão diferente das do pré-escolar mas não era
propriamente uma novidade porque sempre se interessou por miúdos com uma faixa
etária bastante superior à dela, muito em parte porque eles a conseguem
estimular e os mais novos não. De visitas esporádicas começou então a ser uma rotina,
talvez porque nessa altura seria o seu ponto de referência na escola, uma vez
que tinha ficado sem a sua educadora e também sem a sua auxiliar preferida
(vítima de um cancro), então a surpresa aconteceu quando foi oferecer flores ao
professor…..algo que nunca tinha feito a ninguém, nem mesmo a mim que sou a
mãe. Compreendi então que apesar de não conseguir comunicar verbalmente, ela
claramente estava a usar tudo o que sabia ou conseguia para comunicar, cheguei
mesmo a assistir a um abraço que ela foi dar de livre espontânea vontade ao
professor e fiquei sem palavras, finalmente ela criava laços a sério com alguém
que não os pais ou a irmã, era por isso uma fase muito especial nas nossas
vidas! Um dia vou dedicar um texto ao professor dela…o Professor José que
apesar de já não ser professor dela porque a escola acabou por fechar ao fim de
2 anos é e sempre será uma peça fundamental na vida da Verónica. Se por um lado
encontramos pessoas com falta de sensibilidade e que em alguns casos até nos
dificultam muita vida, também é verdade que há outras pessoas que encontramos
na nossa caminhada que são híper especiais e o professor dela (será sempre para
mim e para ela, ainda que não de forma oficial).
De uma forma muito reduzida, os dois anos que se seguiram foram uma
verdadeira montanha russa, onde houve momentos altos e baixos, mas nada teve a
haver nem com o professor nem com os colegas, digamos que foi mais uma questão
de agrupamento vs recursos humanos (muitos saberão aqui ao que me refiro). Durante
o tempo que esteve nesta escola, vi uma Verónica mais virada para os seus pares
e note-se que o método terapêutico escolhido por nós pais trabalhava mais a
parte cognitiva e não a parte social, mas o trabalho feito na escola levou a
que desenvolvesse aptidões sociais que é uma das principais condicionantes
neste tipo de diagnóstico.
Numa altura que vejo tantos pais a queixarem-se de
que as coisa não correm nada bem ou pelo menos como tinham esperado na escola
dos seus filhos é, com uma certa nostalgia que recordo este dois anos porque de
facto mudaram e definiram o percurso escolar da minha miúda.
Após ter fechado a escola da Verónica, como
qualquer outro pai fomos ver escolas dentro e fora do concelho para podermos
tomar a decisão que nunca queríamos ter tomado mas acabamos por escolher uma
que nos pareceu dentro dos possíveis ser o mais adequado até porque claramente
nada era comparável ao que tinha tido antes, muito em parte porque agora já não
há assim tantas escolas de “aldeia” e as poucas que há por norma não têm
meninos especiais por causa de não terem uma unidade estruturada. Apesar
de tudo muito planeado e até antecipado, levamos um Verão inteiro a “treinar” a
Verónica para a grande mudança, inclusive com o apoio de terapeutas da colónia
externa em que ela esteve, uma colónia muito especial para meninos especiais
(voltarei aqui a falar pois já vi que muitos desconhecem a existência desta
colónia). No entanto, as coisas não correram nada bem, vimos que tentou integrar-se
na nova turma, tendo inclusive ido ao quadro de livre espontânea vontade para mostrar
aquilo que sabia mas a escola acabava por a levar muitas vezes para a unidade,
algo que não estava de todo habituada pois tinha estado em sala de aula nos
anos anteriores. Nunca percebemos se ela teria ido ou não à casa de banho nos
primeiros dois dias pois ninguém soube dizer (ela precisava de ajuda nessa
área), sabendo nós que ela tem a capacidade física de aguentar um dia inteiro
sem ir à casa de banho, foi quase a confirmação de que não teria mesmo ido, a
questão é que ela tem um historial clínico com alterações nos rins. Depois
viemos a saber pela escola que teve um ataque de pânico no refeitório,
colocaram-na na fila de espera e foram embora, depois de tanto alertar
claramente não conheciam a minha miúda e muito menos o perfil de autismo dela. Entre
estas e outras situações, começamos a ver o comportamento dele a alterar-se de
uma forma assustadora, tendo surgido ocasiões em que notamos que poderia de
alguma forma estar a regredir e isso é perigoso no autismo. Foi então que
marcamos consulta de urgência com o pedopsiquiatra e ficou de baixa durante uma
semana até percebermos qual o melhor caminho para a Verónica. Posso vos dizer
que no segundo dia de aulas dela na nova escola, acabei esse dia a telefonar a
chorar par o professor dela, algo que já não me acontecia faz tempo….sou mais
de lutar do que chorar, sobretudo no autismo dela…..até porque não resolve nada
infelizmente mas faz parte, somos pais e humanos!
Nunca decidi nada em
desespero, o desespero é inimigo do bom senso e nisto do mundo do autismo deve
se ter cuidado porque há muita exploração de “pais”, de repente há várias
formas de se fazer dinheiro com o autismo e ter de separar o trigo do joio é difícil,
sobretudo se estivermos em situação de desespero. Como já vem sendo habitual da
minha parte, até porque sou uma pessoa bastante racional comecei a pesquisar
alternativas à escola dela, acabo sempre por ir espreitar nos EUA ou no Canadá,
a minha ideia é que lidam com isto há mais tempo do que nós e têm uma mente
mais aberta, não quero dizer com isto que Portugal não lida bem com o Autismo,
não há perfeição em país algum e nós até estamos bem posicionados, temos de ser
honestos quanto a isto. Começou então a surgir a ideia do
“homeschooling”
(Ensino Doméstico).

A ideia só por si era tentadora, mas também aterradora, na
medida que assumiríamos a total responsabilidade pela escolarização dela, se a ideia
assusta por vezes em miúdos sem patologias imaginem miúdos dentro do espectro.
Não iria decidir isto sozinha, passei horas a falar com terapeutas, familiares
próximos, amigos, pais em ensino doméstico e o pedopsiquiatra. Curiosamente, a
pessoa que não falei sobre “homeschooling” foi o professor dela, não sei bem
explicar porquê, não consegui na altura e até tinha medo de lhe contar, mas ver
a Verónica a encolher-se e ter ataques de pânico a entrar no centro de saúde a
pensar que era uma outra escola, foi o click que precisava para ir em frente.
Creio que se o pedopsiquiatra me tivesse dito que era um erro da minha parte,
nunca teria dado o “salto”, mas não só apoiou como disse que tinha tudo para
correr bem, sobretudo porque tínhamos alternativas para ter interacção social
com outras crianças. Num jantar que se deu nessa altura de uma associação muito
especial da qual faço (da qual falarei aqui pois acho que poderá ser uma grande
mais valia para crianças e famílias especiais), sabia que o professor estaria
presente, então escrevi-lhe uma carta com o meu coração, achei que não havia
outra forma de o fazer….posso vos dizer que foi a carta mais longa que escrevi
em toda a minha vida mas foi também a mais verdadeira. No fundo, acho que se
ele desaprovasse e podia o fazer, eu estava a retirar a minha filha da “escola”
eu desmoronava-me ali mesmo. Lembram-se de eu ter dito que ele era e é híper especial,
pois bem não só apoiou a decisão como tem acompanhado a Verónica desde que
iniciámos o “homeschooling”.
Dedicarei um texto exclusivo só para este tema,
até porque já me pediram para fazer um texto a testemunhar como tem sido a
nossa experiência e até para partilhar estratégias de ensino para autismo.
Embora esta tenha sido de facto a nossa escolha para a Verónica, ela não foi
decidida de ânimo leve e eu que estou responsável pelo ensino dela, tenho
habilitações para o fazer e faço formações quer na área do autismo quer na área
da educação e fazem toda a diferença. Aquilo que parecia ser quase uma “sentença”
tornou-se um motivo para sorrir e ter esperança num futuro muito melhor pois a
Verónica voltou a escrever nos cadernos coisas da escola (teve mais de um ano e
nem médicos ou terapeutas conseguiram que ela voltasse a fazê-lo), mas eu
consegui. Já imaginaram como eu poderia mostrar à escola que ela sabia as
matérias do currículo escolar se não tivesse rigorosamente nada para mostrar?
Pois é, obstáculo ultrapassado…teremos ainda outros a ultrapassar
mas para a
frente é que é caminho e nós estamos a ir em frente sem dúvida alguma. Exposto
isto, não ache que o “homeschooling” deva ser a primeira opção, se calhar nem a
segunda ou terceira e eu não sou contra a escola, simplesmente no caso da minha
filha o sistema falhou com ela e tivemos de ser nós a resolver a situação
escolar dela, felizmente estou a conseguir cumprir as metas curriculares ainda
que de uma forma adaptada claro mas o currículo é igual a todos os outros
miúdos. Uma criança sob stress ou que sofra de ansiedade não vai estar apta
para ser ensinada na sua totalidade, no caso da Verónica além de não estar a
aprender estava a regredir e isso não podíamos permitir. Tivemos muitos
opositores desta estratégia, faz-me lembrar um pouco quando alguém diz que quer
ser vegetariano, aparecem logo dezenas de entendidos em nutrição. Não é fácil
por vezes estarmos a lutar e ver que para além de não nos ajudarem tentam fazer
com que não sigamos o nosso caminho, só por este ser diferente, não se trata de
um medicamento ou algo que vá afectar a sua saúde, quando muito poderia não
funcionar e termos que desistir, mas não é de todo o nosso caso. Está a ser um
sucesso tão grande que resolvi que quero ajudar outros miúdos como ela mas
antes farei toda a formação que acho necessária para o efeito, estou mesmo “apaixonada”
por esta descoberta de vocação….eu era bióloga.
Espero que seja útil estes textos, demorados e em
forma de testamento, o tempo na minha casa não abona e o pouco que tenho livre
dedico a fazer formação….essa sempre foi a minha estratégia: formação!
Até breve,
Eu.
By Verónica!